Hoje ela não é mais!

24/10/2018 17:18

"Hoje não é mais! Senhor, para quem nos voltaremos, sempre que o destino se cumpre? Ela não é mais! Hoje está guardada, adormeceu no teu seio. Hoje conhece todos os segredos e sabe - ela que desconhecia as letras e as ciências, que era pobre de conhecimentos de que os homens se orgulham - hoje sabe tudo, e está na sua primeira noite no túmulo sózinho diante do mistério, na intimidade do mistério, participando do grande segredo. Está nesta grande noite primeira, sozinha; é apenas uma velha mulher frágil, uma velha mulher morta, um corpo antigo se desfazendo, um morto a mais, anônimo entre tantos mortos, entre tantos grandes mortos, entre tantos e tantos mortos famosos; é uma velha figura de mulher escondida, encolhido num túmulo - mas já não há mais nada que ela não tenha desvendado. Ainda ontem, era uma forma humana sofrendo, atravessando a sua agonia, o duro mar da agonia, se agitando nas ondas da luta final. Hoje se acolheu na morte, nela se fixou e já reconheceu e já encontrou o fim de tudo ou a vida eterna e verdadeira, a Vida que está no coração da morte e da promessa. Leu poucos livros, realizou poucas noções das coisas, mas quem, entre os vivos, se poderá comparar agora, no conhecimento essencial, com essa noviça da morte, que parecia no seu caixão uma primeira comungante, o rosário de marfim nas pequenas mãos brancas, subitamente refloridas?

 

Augusto Frederico Schmidt, Saudade de mim mesmo (uma antologia de prosa) - Seleção e organização Letícia Mey e Euda Alvim