Consagrado ao Diabo

13/12/2017 20:00

"Mas uma tal forma de governo, embora singular, é superada pela estranheza da religião que domina em Ascência. Quase todos os seus habitantes seguem, pouco mais ou menos, a antiga doutrina de Zarathustra, e acreditam, portanto, numa divindade destruidora e péssima. Desta doutrina os fiéis tiram, contudo, uma consequência inesperada e incrível. O seu culto - orações, ritos, sacrifícios - dirige-se unicamente à divindade cruel, isto é, ao Demônio. Todos os seus santuários são consagrados ao Diabo, todos os seus sacerdotes estão a serviço de Satanás. As que eles apresentam para justificar essa adoração diabólica merecem ser relatadas, embora tenham sabor de paradoxos infernais.

O Deus bom, afirmam os seus teólogos, é um pai amoroso, e não pode deixar, pela sua natureza eterna, de amar e perdoar. Ele não necessita de oferendas ou orações; sabe melhor do que nós o que todos os dias ocorre, e não pode deixar de proteger os seus filhos. O Deus mau, pelo contrário, precisa der ser aliciado, propiciado, implorado, para que não se assanhe demasiadamente contra nós. Dão-se ofertas e tributos aos monstros, na esperança de sermos poupados pela sua ferocidade. E o mesmo fazemos nós com o Demônio. O maior pecado do Diabo é a soberba e, portanto, o nosso culto exclusivo por ele, os louvores que prodigalizamos ao seu poder, a nossa contínua humildade e veneração, lisojeam-no, suavizam-no, abrandam-no, e isto é tão verdade que somos vítimas das suas vinganças muito mais raramente que outros povos. O Deus bom, na sua infinita bondade, tem dó do nosso medo e de nossa fraqueza: sabe perfeitamente que se o culto exterior é para o diabo, o nosso íntimo amor é por Ele.

O homem do Rei que me proporcionou estas notícias não me quis deixar entrar em nenhum templo da cidade, apesar de eu lhe ter oferecido uma grande quantia em ouro. Tive que deixar Ascência quando ainda me encontrava entontecido pelo espanto e obcecado pela curiosidade."

 

Giovanni Papini, O LIvro Negro - Novo Diário de Gog